Costumo dizer que sou quase caiçara. Frequento Paraty Mirim desde os três meses de idade. Do pier de casa fui ganhando o mar e as montanhas daquela região tão linda e, graças a Deus (e à distância das babilônicas Rio e SP), ainda tão preservada.
Em janeiro último fiz minha viagem mais "ousada". Ao lado de quatro amigos e do companheiro de sempre, Pedro, exploramos o Saco do Mamanguá e a Reserva da Juatinga em cinco dias de caiaque e trekking.
O texto - ilustrado pelas magníficas fotos do aquerido Alexandre Cappi - foi parar nas páginas da Revista Horizonte Geográfico. Para ler,
clique aqui ou vá na banca mais próxima. Sim, ainda sou
old school e acredito em papel.
Mas, como toda jornalista apegada às palavras que escreve, compratilho abaixo a reportagem na íntegra, em versão "original".
(não deixa de clicar no link para ver as imagens do Alê. imperdível!)
Cinco dias entre trilha e mar
Ao sul de Paraty, berço do navegador Amyr Klink, fica um parque de
diversões a céu aberto: a Reserva da Juatinga
Manoela Penna
“Um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir”, escreveu
o navegador Amyr Klink em seu livro “Cem dias entre céu e mar”. Conheci Amyr ainda garotinha, nas visitas
que fazia à nossa casa em Paraty Mirim. Naquela época, meu horizonte não
passava dos menos de 2km que separam o píer da ilhota da Cotia, ali do outro
lado da baía. Cresci e, com o tempo, fui ganhando coragem e aguçando a
curiosidade. Quando, enfim, decidi botar o caiaque n’água para a Expedição Cajaíba, em janeiro de 2014,
lembrei novamente dos ensinamentos daquele Velho Lobo do Mar, dessa vez ouvido
de sua boca quando trabalhamos juntos em 2002. “Não sou aventureiro. Para fazer
as viagens que faço, na verdade, é preciso muito planejamento”.
Nem de longe tenho a pretensão de querer comparar cinco dias dando
a volta na Reserva da Juatinga a pé e de caiaque com as incríveis viagens de
Amyr pelos oceanos mais exigentes do planeta. Mas graças a um sonho e altas doses
de logística, os cerca de 100km que percorremos se não valem um livro, ao menos
rendem uma boa história.
Juntar um grupo de amigos com as mesmas aptidões técnicas, preparo
físico, astral e disponibilidade de tempo é, sempre, o primeiro desafio. No dia
5 de janeiro lá estávamos varando a noite em Paraty Mirim eu, Capitão, Cappi, Pig,
Zezinho e Marcolino às voltas com equipamentos, comidas e caiaques. Já tínhamos
trocado ideia com o experiente Jorge Elage, nosso amigo e guia da região, e
decidimos evitar contratempos encerrando o trecho de caiaque no Pouso da
Cajaíba ao invés de tentar cruzar a temida Ponta da Juatinga, ponto mais a leste
da costa brasileira e conhecida como “Cabo Horn brasileiro”. A partir dali
seguiríamos a pé até reencontrar os barcos no fundo do Mamanguá, na comunidade
do Corupira, para voltar para casa remando.
Zarpamos cedo em três caiaques duplos oceânicos. O mar estava
calmo com o sol forte fazendo brilhar o verde da Mata Atlântica e destacando o
balé das tartarugas na água cor de esmeralda. Fomos parando em cada praia da
costeira, já que levávamos quase nada de equipamento. Deixamos as mochilas para
serem entregues no Pouso da Cajaíba, quando mandaríamos os caiaques a reboque
para Paraty Mirim, além de termos decidido incentivar a economia nas
comunidades caiçaras ficando em casas de pescadores e fazendo o que chamamos, ao
final, de “degustação de PF”. Ou seja, não levamos barraca nem comida
desidratada, apenas dinheiro vivo.
No vaivém de lanchas e canoas do Saco do Mamanguá, fomos rasgando
a água até o manguezal 8km adentro. Quase virgem, o colorido dos caranguejos
vermelho-amarelo contrastava com a vegetação salpicada por bromélias de todos
os tipos. Quase 2km rio acima deixamos os barcos e seguimos por uma trilha leve
de 15 minutos até a cachoeira de água fresca.
Já mortos de fome chegamos na Praia do Cruzeiro, aos pés do Pico
do Pão de Açúcar, onde vivem cerca de 20 famílias, quase todas descendentes de
escravos. Filho de uma antiga parteira do Saco do Mamanguá e artesão de mão
cheia, Seu Preá nos acolheu em seu quintal à beira mar entre remos e barcos de
madeira caixeta. Depois do jantar no Bar do Cruzeiro, em que Dona Roseli fritou
com esmero a cavala e as lulas pescadas pelo marido, Seu Maneco, combinamos de
tomar um café da manhã improvisado ali mesmo no dia seguinte, às 7h, para então
encarar a Ponta da Cajaíba.
Fortalecidos por aipim cozido, banana e ovo caipira mexido,
deixamos o Cruzeiro para trás sob o silêncio do amanhecer. Sabíamos que aquele
mar de azeite não duraria muito tempo, já que a previsão apontava vento leste
entrando a partir de 9h.
Foi só fazer a curva para entrarmos em um gigantesco
liquidificador, com ondulações batendo no costão rochoso e voltando para cima
de nós, conferindo altas doses de emoção à travessia. Surfamos até chegar nas
águas abrigadas da Praia Grande da Cajaíba, onde estavam nossas primeiras metas:
banho de cachoeira e pastel de lula do Rancho da Jandira. De lá seguimos, ainda
chacoalhando, para o Pouso, onde havíamos marcado encontro às 16h com nossas
mochilas, trazidas de lancha pelo Ronaldo.
A caminhada de pouco mais de uma hora até Martim de Sá é
deslumbrante. Em meio a palmiteiros, samambaias e embaúbas, o caminho vai
serpenteando um vale até chegar no portão da propriedade de Seu Maneco. Um
cartaz dita as regras: proibido palavrão e bebida alcoólica. O primeiro pedido
foi atendido. O segundo, negociado com Teresa, filha de Seu Maneco, que autorizou
o vinhozinho para acompanhar os PFs sob céu estrelado. Afinal, tínhamos que
liberar o peso da mochila para as trilhas por vir!
Aproveitamos o terceiro dia em Martim de Sá, com direito a passeio
até o encontro do rio com o mar e também à Praia da Sumaca. Seguindo
recomendação de Seu Maneco, fomos de barco com Cláudio (um de seus filhos) e
voltamos de trilha, uma das mais bem sinalizadas da região, aliás. “Vocês vão
me agradecer. Com o sol que está fazendo aquela roça de capim lá no alto vira
uma coisa horrível. E os 300m de morro aqui perto são melhor descendo do que
subindo”. MUITO OBRIGADO, SEU MANECO!
Para chegar à Ponta Negra no dia seguinte, dividimos a equipe em
dois. Cappi e Pig foram por terra, numa trilha dura tanto fisicamente quanto em
termos de navegação na base do Pico do Cairuçu (1070m). Nós quatro acionamos
novamente o Cláudio para contornar o imponente paredão de pedra e chegar ao vilarejo,
de onde partiríamos até a Praia do Sono no trecho mais lindo e divertido da
expedição.
São quatro praias de águas cristalinas, areia branca e quase
nenhuma onda. Brincamos dizendo que o esporte oficial do quarto dia era
“boiar”. Trilhas curtas e fáceis, e por isso movimentadas, ligam Galhetas (com
sua bela cachoeira), Antiguinhos, Antigos e Praia do Sono. O último trecho
entre Antigos e Sono, porém, termina em um barranco desgastado pela erosão. Ao
mesmo tempo em que proporciona vistas sem igual para a maior praia da região,
com 1,3km de extensão, dominada no canto esquerdo pelo estuário do Rio do Sono,
também exige de joelhos e equilíbrio, ainda mais com mochilas nas costas.
Imagino que, em temporada, o Sono seja impraticável. Estima-se em
10 mil o número de visitantes em datas como ano novo. Alvo recente de
ordenamento turístico pelo Instituto Estadual do Meio Ambiente do Rio de
Janeiro, assim como Trindade e Martim de Sá, o Sono é um misto de comunidade
tradicional com frisson turístico. Enquanto meninos jogam futebol no pôr do
sol, barqueiros vendem passeios até as praias vizinhas. Ao lado de campings
rústicos, moradores locais já constroem simpáticas pousadinhas. Como nós seis
passamos dos 30 anos, achamos melhor ficar com a segunda opção, com direito a
banho quente, ventilador e varal para roupas molhadas, depois de comer o melhor
PF dos últimos quatro dias.
Pão com ovo (clássico do café da manhã em todas as comunidades),
bolo de cenoura e pé na estrada. Partimos sem pressa para o último trecho. O
sobe-desce entre Sono e Vila Oratório é usado por caiçaras e turistas
diariamente e, por isso mesmo, extremamente bem cuidado (com escadas, corrimão
e placas). Não chega a engarrafar, mas riacho no meio do caminho é concorrido.
Da Vila Oratório, entrada do Condomínio Laranjeiras, ao Corupira o caminho é
feito por dentro de uma fazenda. Com estradão de terra batida e cascalho
perfeito para mountain bike (#ficadica).
Recuperamos os caiaques com direito a cerveja gelada trazida pelo
Ronaldo. Novamente na água, contornamos as curvas do costão do Mamanguá parando
vez ou outra para refrescar de mais um dia quente e atipicamente sem chuva na
região. Ao avistar a igrejinha de Nossa Senhora da Conceição, a mais antiga da
Paraty, iluminada pelos últimos raios de sol daquele 11 de janeiro, novamente
lembrei de Amyr chegando com seu Paratii na Baía de Jurumirim.
“Um homem precisa viajar por sua conta, não por meio de histórias,
imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para
entender o que é seu”.
AMBIENTE PRESERVADO
Nossa expedição passou por três ambientes de conservação na área ao sul da cidade histórica de Paraty/RJ: a APA Cairuçu, a Área de Lazer de Paraty Mirim e a Reserva Ecológica da Juatinga.
A região exibe natureza intocada: Mata Atlântica e seus ecossistemas associados, como manguezal e restinga, além de praias e costões rochosos. O belíssimo Saco do Mamanguá, único fiorde tropical da costa brasileira, se estende por 8km até encontrar o mais bem preservado manguezal da Baía da Ilha Grande.
A Área de Lazer de Paraty Mirim, nosso ponto de partida, foi criada em 1976 e inclui as antigas fazendas Paraty Mirim e Independência.
Já a parte maior da expedição percorreu a Reserva Ecológica da Juatinga. A REJ foi estabelecida em 1992 e é administrada pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, o Inea. Englobando comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas, a REJ ocupa uma área de cerca de oito mil hectares.
A Área de Proteção Ambiental Cairuçu, por sua vez, criada por decreto em 1983, é de responsabilidade do ICM-Bio (antigo IBAMA) e se estende por quase 34 mil hectares, englobando a REJ, Paraty Mirim, a APA Municipal da Baía de Paraty e ilhas da Reserva Ecológica dos Tamoyos, sobrepondo-se em alguns pontos com o Parque Nacional da Serra da Bocaina.
Desde 2010 a região vem sendo fruto de estudo de recategorização para se adequar ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A intenção é transformar a REJ em Parque Estadual, assim como as áreas mais preservadas da região de Paraty Mirim, respeitando os locais onde há presença de população e uso do solo.
TRECHOS PERCORRIDOS
Dia 1: Paraty Mirim – fundo do Mamanguá – Praia do Cruzeiro
(caiaque)
Dia 2: Praia do Cruzeiro – Praia Grande da Cajaíba – Pouso da
Cajaíba (caiaque) – Martim de Sá (trilha)
Dia 3: Martim de Sá – Sumaca (trilha)
Dia 4: Martim de Sá – Ponta Negra – Galhetas – Antigos –
Antiguinhos – Sono (trilha)
Dia 5: Sono – Vila Oratório – Corupira (trilha) – Paraty Mirim (caiaque)
PREPARE SUA VIAGEM
Caiaque
Rio de Janeiro:
Ricardo Freitas (21 98107-3010 / 21 99991-4612)
São Paulo:
Vit Vanicek (11 99226-8296)
Paraty:
Rodrigo (24 99941-9178)
Guia da Região (Turismo Sustentável)
Jorge Elage: 24 99847-3078 / www.espiritolivre.net
Paraty
A cidade histórica a 268km de São Paulo e 245km do Rio de Janeiro
é uma jóia colonial brasileira com seu casario e calçamento preservados e
excelente infra-estrutura turística (pousadas, restaurantes e lojinhas
charmosos). Na praia do Jabaquara ficam guarderias de caiaques, que podem ser
alugados e transportados até o início da expedição em Paraty Mirim ou direto
para o Pouso da Cajaíba, por exemplo. No cais turístico é possível combinar
passeios e fretes em traineiras.
O trecho pelo mar entre Paraty e Paraty Mirim tem cerca de 15km e
é todo abrigado, possibilitando deliciosa canoagem.
Paraty Mirim
Os 7km de estrada de terra a partir da Rio-Santos levam a uma
pequena vila caiçara com estrutura razoável para o turista: estacionamento, energia
elétrica, mercearia, restaurante, camping e barqueiros, que podem facilitar o
transfer para diversos pontos da Reserva da Juatinga.
Casa: Pedro Ninô (casaparatymirim@gmail.com / 21 98108-5333)
Praia do Cruzeiro
A Praia do Cruzeiro é uma das comunidades mais desenvolvidas do
Saco do Mamanguá. É dali que sai a trilha para o Pico do Pão de Açúcar (575m),
que vale o passeio para contemplar uma visita inigualável da Serra do Mar.
Casa Caiçara: Sr. Preá (24 9841-3365 / 24 9955-9143, ambos para
recado)
Camping: Sr. Orlando (24 99916-3532)
Restaurante do Cruzeiro: Dona Roseli (24 9961-9107 / 24 9832-4312)
Pouso da Cajaíba
O Pouso da Cajaíba fica lotado nos feriados e, justamente por
isso, se desenvolveu bastante. Há bares, pousadas, campings ao longo da praia e
no interior do vilarejo. De lá é fácil também alugar botes e traineiras para o
deslocamento por mar na região. É do Pouso que parte a trilha de 1h30 para
Martim de Sá.
Bar: Velho da Cajaíba (24 99983-0911)
Martim de Sá
A pequena extensão de areia da praia de Martim de Sá, com difícil
acesso por água em dia de mar grande, é dominada pela família de Seu Maneco. O
famoso camping tem infra adequada para montar barracas, banho e cozinha
coletiva. Há também opções de PF feito pelas filhas de Seu Maneco, bem como
itens de “emergência” para compra (pilha, macarrão, etc).
Teresa (filha Seu Maneco): 24 99999-7072 (oferece casa para
aluguel)
Ponta Negra
No meio do ano, único meio de acesso até Ponta Negra é via
terrestre a partir do Sono devido ao mar de ressaca. O bar Bikinha, ao centro
da diminuta faixa de areia, oferece café da manhã, petiscos, refeições e
suprimentos para o viajante.
Chalés: Cauê Villela (24 9906-9018)
Praia do Sono
Não faltam opções de hospedagem, alimentação, barco (além de
energia elétrica!) na Praia do Sono. O acesso é feito pelo mar a partir de
Trindade ou por trilha saindo da Vila Oratório/Condomínio Laranjeiras.
Pousada Lindalva e Ení: 24 99244-3941 / 24 99818-1541
Lindalva e Ení também têm restaurante bem no centro da praia, com
um PF de lula inesquecível. Em frente ao restaurante (com opção de self
service) fica o quiosque da Janete, com bolos, café da manhã e açaí.